Desejo que ao receberes este meu aerograma estejas bem de saúde - nós estamos bem, felizmente. Assim começavam sempre as centenas de aerogramas, cartas e postais que a minha mãe lia e escrevia para as suas vizinhas, amigas e camaradas. Era das poucas mulheres que sabiam ler na nossa rua do Alentejo.
Lembro-me de marcarem hora para irem lá a casa para que a minha mãe lê-se ou escrevesse aos maridos, namorados e filhos na guerra colonial... postais para os maridos, irmãos e pais presos em Caxias. Estas ultimas quase sem terem resposta( só mais tarde entendi o porquê) Era um partilhar de segredos, medos, aflições e esperanças. Lembro-me também da paciência e amor que a mãe tinha para resumir em palavras que bastassem aquelas intermináveis conversas, que como eram ditadas não cabiam no aerograma, carta ou postal.
Sempre que alguma mulher vinha ouvir ou ditar uma carta, eu e os meus irmãos já sabíamos que era tempo de brincar na rua ou no Inverno de irmos para a cozinha improvisada no quintal. A vida daquelas mulheres era partilhada com a minha mãe, com uma cumplicidade e amizade que embora muito menina me emocionava.
Uma tarde de Inverno a vizinha Maria Beatriz veio para que a minha mãe lhe escrevesse uma carta para o marido que estava a trabalhar em Lisboa. Assim que a vizinha chegou nós como habitualmente íamos sair para a cozinha do quintal
quando a mãe me chamou e disse "Filha, tu ficas. Vais aprender como tratar da correspondência das nossas amigas, para quando a mãe for para o hospital ser operada à perna tu poderes continuar a minha tarefa".
Lembro-me do orgulho e alegria que senti, lembro-me das centenas de aerogramas , cartas postais que li e escrevi. Nascida de uma família humilde alentejana, foi uma das heranças mais valiosas que a minha mãe me deixou.
Ester Cid
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