Preciso voltar sempre ao meu Alentejo
Acontece-me sempre o mesmo e não consigo explicar, porque ao entrar no carro e iniciar a viagem começo a cantar durante toda a viagem,canções que fazem parte da minha infância, e que aqui em Lisboa por vezes as esqueço. Este fim de semana lembrei-me do hino dos mineiros e fui a trauteá-lo até Montemor. "Tenho a camisa rota trá... lá... lá. Com sangue de um camarada trá... lá... lá". Em Montemor, uma paragem para tomar um saboroso café e uma óptima queijadinha, especialidade de Montemor.
Sigo novamente viagem em companhia do meu cante alentejano, que tanto gosto. "Se eu for presa por cantar lá... lá .. .lá... eu sou como um passarinho que até na gaiola canta" e assim chego à minha linda vila de Monforte.
Ao sair do carro os vizinhos cumprimentam-me, e a primeira pergunta é sempre igual "Então amiguinha estás cá? Então quando abalas?" Depois de os informar que só vou passar o fim de semana, e que regresso domingo à noite, começam os convites, "Esterinha, olha que o jantar hoje é na minha casa, no sábado vais à da Maria almoçar, pois já ficou prometido, da outra semana passada.
O jantar de sábado é no restaurante na Aldeia de Vaiamonte. A malta amiga combinou ir lá comer um cozido de grão feito em lume de lenha, a Ana e a Rosa também chegaram de Lisboa ontem, e também vão jantar, "vai ser bonito vai, vamos lá juntar 25 pessoas", dizia-me a Catarina, uma mulher linda, cheia de energia, com uns olhos pretos
enormes, umas rosetas muito vermelhas, e uma história de vida triste, mas que não fez dela uma mulher amargurada.
Crescemos juntas, estudamos nas mesmas escolas, vivemos e fomos cúmplices de muitas vivências, só nos separamos quando vim viver para Lisboa, e mesmo assim a separação foi só física, porque continuamos a estar em contacto sempre. Uma verdadeira amiga de infância. Mas dizia eu, a Catarina é uma mulher, que teve um casamento infeliz, foi mãe, de uma rapariga lindíssima e inteligente, que ao nascer foi rejeitada pelo pai (o ex -marido da Catarina
porque ele queria um rapaz. A partir do nascimento da Marta, os problemas conjugais começaram, pois a Catarina tinha dificuldades em aceitar a maneira injusta, como o marido tratava a filha
Uma noite a Catarina recebeu um telefonema de outra mulher, de uma aldeia próxima, e informou-a que estava grávida de um segundo filho,do ex-marido da Catarina.
Quando ele chegou, ela confrontou-o com a conversa telefónica, tendo ele confirmou tudo, e acrescentou que não tencionava deixar a casa porque queria continuar a fazer vida com as duas.
A Catarina ao ouvir tudo isto, deu trinta minutos ao ex- marido para arrumar as coisas, e sair. Lembro-me de terem passado quarenta e cinco minutos, e da minha janela ver o ex marido da Catarina, ser atirado pela janela e de seguida as roupas levarem o mesmo fim
Ainda hoje ela sorridente conta "agarrei o gajo pelos fundilhos e ala que já era tarde"
E lá vamos nós sábado, á noite para Vaiamonte, para o nosso jantarinho de grão... que alegria quando nos encontramos todos, é por vezes complicado porque queremos falar todos ao mesmo tempo, mas lá vamos conseguindo, partilhar emoções, e principalmente partilhar afectos, como se de uma enorme família se tratasse.
Domingo 6 horas da manhã e em casa do meu irmão todos dormem. Levanto-me, tomo o meu banho, escovo os dentes e o cabelo, visto-me, e prendo os cabelos e saio muito devagar, comendo uma maça, e caminho direitinha, à ribeira da Leca, que tantas recordações de infância me traz, é tão bom sentir este vento diferente no rosto, sinto que ele me beija de maneira diferente do de Lisboa, como se não me esquecesse e de cada vez que regresso quisesse matar saudades minhas e beijando-me, as quisesse saciar.
Chego à ribeira e ninguém por perto, só eu, o cantar dos pássaros, o barulho das águas, os cheiros do rosmaninho, giestas, alecrim e jasmim fundem-se e trazem-me à memória os cheiros de infância. De repente sinto uma vontade enorme de entrar na água. Descalço os ténis, entro na ribeira, e salto... chapinho, é o termo, rindo sozinha, ou quem sabe? Não, é que neste estado de graça,sinto que tudo, e todos riem comigo.
Chego a casa toda molhada, mas o sorriso cúmplice, das pessoas que vou encontrando e do meu irmão, sei que compreendem, que preciso deste "banho de paz" para poder voltar.
Depois dos amigos e familiares me encherem o carro,com batatas,fruta, chouriços, farinheiras, queijos e tudo o mais que querem partilhar, sigo viagem, mas desta vez sem cantar, parece que tenho medo de abrir a boca e deixar fugir tudo o que de valioso trago dentro de mim.
Ester Cid
2012
Imagem: Google