sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O RELÓGIO DO MEU AVÔ

Quando raramente coloco (tenho medo de o perder) um fio de ouro, que tendo pertencido à minha bisavó, á minha avô, de quem também herdei o nome Ester e à minha mãe, pelos meus 14 anos veio parar a mim. Lembro-me de o meu avô materno olhar para mim com o olhar enternecido e orgulhoso, como se eu, com aquele minúsculo fio de ouro, trouxesse todas as mulheres da família ao seu olhar.


Lembro-me da cumplicidade que me unia ao meu avô em cada livro lido e explicado com a paciência que só os avós sabem ter, dos discos de vinil ouvidos em segredo à hora da sesta e de seguida guardados no baú dos segredos partilhados entre mim e o meu avô. Lembro-me de eu e o meu avó nos zangarmos por causa de um relógio de parede a que ele dava corda e gostava de ouvir dar horas ruidosamente e que eu detestava ouvir. Ainda por cima, aquele relógio dava também os quartos de hora.


Consegui entrar num acordo com o meu avô e o relógio de parede que se encontrava na sala era parado pelo meu avô, segurando o pêndulo do relógio até ele deixar de fazer aquele barulho, que para mim me parecia o barulho de um coração angustiado, todas as noites antes de jantar o relógio era silenciado e só voltava a "pulsar" depois de eu sair para as aulas.


Este ano, no último dia da Festa do Avante, apeteceu-me colocar ao pescoço o minúsculo fio de ouro. Senti que neste gesto levei todas as mulheres da minha família à Festa, lembrei o "pulsar" do relógio de parede, veio-me à memória as conversas entre mim e o meu avô, os seus sonhos de viver num país de liberdade. Senti que estava na hora de passar para a minha filha este legado das mulheres da família. Pensei em como seria bom ter o meu avô aqui neste deslumbramento de Festa da liberdade e da fraternidade, como gostava que ele soubesse que o jornal, que ele tantas vezes escondeu no baú, tinha uma Festa com o seu nome AVANTE.


Parece que neste parar de horas eu inconscientemente queria que o tempo parasse para agora o ter aqui comigo. E não é que senti tantas... mas tantas saudades de ouvir o barulhento relógio do meu avô "pulsar" novamente depois de o meu avô lhe dar corda.

Ester Cid
Festa do Avante 2011